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21 abril, 2008

Conto Narrativo

Joca Tijó

Frio, matuto, distante, não muito sociável. Assim era o pós adolescente de tipo físico sofrido, como suas atitudes perante a vida em comparação aos pouquíssimos amigos de mesma idade, e pele típica de habitantes de Novo Triunfo, cidadezinha próxima a Antas, no interior da Bahia, onde morava.

De família triste, na míngua, João Carlos suspirava sonhos pelos cantos silenciosos e escuros daquela casa em que vivia desde seu nascimento. Como todos os outros de sua região, desejava conhecer um horizonte que lhe mostrasse além dos secos campos que o cercava.

Não havia miséria no sentido real da circunstância, mas Joca almejava uma vida um pouco diferente, queria ter o que alguns amigos seus tinham e que ele só podia desfrutar nas tardes de Domingo, quando Iranildo, seu melhor amigo emprestava a televisão e sua sala acanhada para ver os jogos de futebol dos times da capital. Não era só por isso que Iranildo era seu confidente, mas pelo fato de ser mais baixinho, franzino e pouco atraía olhares das moças quando andavam juntos pelas ruas da cidade.

De tanto sonhar, mas também rezar todo sábado na igreja mal acabada que havia ali, próximo à sua casa, Joca sentia que algo iria mudar em sua vida. E não é que poderia mudar mesmo? Numa certa tarde de quarta-feira, enquanto dormia, o que era raro, pois sempre procurava, mesmo que fosse a mais inútil ocupação ou passatempo, como amassar tampinhas de garrafas de bebida para parecerem um time de botão, Joca recebeu um tapa na cabeça, era sua mãe, que o acordara para atender um amigo mais velho esperando-o na porta.

Ofegante e alegre pelo recado e boa notícia que tinha a passar para Joca, o amigo mais fiel, porém menos ponderado dos arredores contou sobre a chance de pegar uma carona com seu tio Jacinto para São Paulo naquele próximo final de semana. O tio havia recebido uma proposta de trabalho temporário em um projeto de uma construção civil na grande selva de pedra, onde já havia morado e trabalhado por uns meses em anos anteriores, mas dessa vez queria levar o sobrinho, Tião, para ajudá-lo na labuta e, quem sabe, colocar o jovem grandalhão e com cérebro por desenvolver em dias mais produtivos do que aqueles que sempre juntava pedaços de revista amassados, catados no lixão de Novo Triunfo, brincando de criar uma novela de papel.

Joca não teve uma primeira reação positiva, afinal estava despertando e tentara raciocinar o que Tião, de pés descalços e com algumas gotas de suor caindo de seu rosto devido ao calor e a sua ânsia de estar junto com seu melhor e único amigo fazia ali na porta de sua casa. –“Vamo Joca, leva aquela sua chutera que tu ganho do seu pai quando ele jogava no amador.”- exclamou Tião.
Com audição apuradíssima, avental amarelado, o qual usava vinte horas por dia em volta de um corpo roliço, porém forte e sadio, Dona Marta vociferou mais do que depressa, fez sombra no filho que titubeava em responder algo ao amigo que ali estava e como sempre com vergonha de pedir um copo d’água para aliviar o calor conseqüente dos doze quilômetros que correu ansioso em contar a novidade para o colega de escola: – “Arruma tuas coisas menino, é sua grande chance.” – ordenou quando enxugava as mãos calejadas que a vida com Genésio, seu marido, a ofereceu desde que se casaram.

Num caminhar sem muita vontade, três dias depois estava Joca, na principal estrada de terra que o levaria ao ponto de embarque, onde ficou combinado de se encontrar com Tião e o tio. Mala surrada, pesada e de alça escorregadia em uma mão, uma pequena sacola com alguns trocados e moedas dadas pelo pai na outra, avistou Jacinto e seu sobrinho, o menino grande na frente, todo sorridente, com o velho gritando atrás, este com a única roupa limpa que possuía depois óbito de sua esposa por desnutrição, vindo de duas quadras dali.
Longos dias e intermináveis noites na rota do “melhorar de vida” pelas estradas clandestinas, as quais o motorista não tinha de pagar pedágio quase até o destino final da maioria dos ocupantes daquele ônibus não muito bem conservado que rodava Brasil abaixo no sentido do mapa.
Nos primeiros dias na capital dormiram em um quarto sem energia elétrica, pensão lotada de pessoas com caras de intenções pouco amigáveis, próxima ao monte de pedras, areia e madeiras que seriam usadas pelas mãos de Jacinto e um grupo enorme de trabalhadores de função braçal no mais audacioso projeto de arranha-céu já elaborado na terra da garoa.
Mas Joca levou consigo a grande capacidade de disciplina e organização que herdara do pai na maneira de arrumar e controlar todas as ferramentas de Jacinto num pedaço coberto à margem da construção, que estava a todo vapor. Ele havia percebido que o tio era remunerado por metro quadrado levantado e lembrando de muitas prateleiras que aprendeu a confeccionar com o pai, conseguiu deixar as tralhas do pedreiro aposentado de forma que o velho ganhasse tempo em vir buscar qualquer um de seus instrumentos de trabalho.

Não demorou mais que duas semanas para aparecer ali no pequeno espaço coberto, onde ficavam passando o tempo dividindo milímetros com as caixinhas de madeira e prateleiras arquitetadas por Joca a fim de organizar as coisas do tio, um sujeito de ar rude, cabelos, barba, sobrancelhas e bigode e brancos, trajando roupas novas, mas tomadas pelo pó da construção que chefiava, a fim de saber como Jacinto lidava de forma tão rápida com as inúmeras paredes que erguia ao longo daqueles dias barulhentos e frios da cidade.
- “Você me parece ter futuro garoto. Tem uma qualidade que nenhum de seus irmãos do nordeste têm quando chegam aqui para tentar a sorte” – deduziu com veemência o velho que sempre mantinha a mão sob o marca passo grudado no seu peito, vítima de três operações cardíacas.

E assim Joca foi convidado por Osmar, o chefe de Jacinto, a trabalhar como almoxarife na grande obra. Era natural que o jovem recém chegado do sertão ia desenvolver outras funções no auge de sua juventude e energia de viver, afinal não assinara nenhum contrato, situação comum que os encarregados de obras impunham aos que ali faziam valer cada gota de suor para pagar cada colherada de comida.

Deu-se início a uma nova história com Joca começando sua vida em um trabalho remunerado. Estava feliz, apesar de não saber que muitas atividades que viriam futuramente o deixariam indignado, até em algumas ocasiões revoltado, pois não era pago para certos trabalhos. Porém isso ele esquecia toda vez que entrava em uma cabine, antes de esperar pacientemente no meio de uma fila kilométrica de trabalhadores braçais, onde recebia um pagamento. Não era muito dinheiro, mas contava e dobrava cada uma das cédulas de real para guardar num envelope velho e rasgado que havia deixado embaixo de seu minúsculo colchão onde dormia apenas algumas horas.

Meses se passaram adentro daquela rotina cansativa, mas de sensação de vida nova, pessoas novas, um degrau pequeno em seu aprendizado por dia. Sem margens de dúvida compensadora, porque para quem não ganhava um centavo sequer para lavar os pratos do almoço da família ou ajudar o pai no preparo de algumas tarefas nada prazerosas como tirar a terra das enxadas e dar banho em seu meio de transporte, um cavalo velho, Joca se sentia como nunca havia se sentido: era alguém na vida. Mesmo em meio a uma multidão que vive correndo de um lado para outro, bem diferente das pessoas que ele estava acostumado a ver diariamente em sua terra, quando resolvia dar uma simples volta no quarteirão da construção gigante.

Mas Joca deu certo. Desenvolveu uma fantástica habilidade com trabalhos manuais, conseqüência das muitas noites que gostava de rabiscar algumas formas e linhas em alguns espaços em branco de revistas velhas, debruçado em sua cama quando ainda dividia o quarto com seus pais. Sua obstinação era notável por todos em sua volta. Era o melhor entre os aprendizes. Tanto que acabou por receber mais trabalho, mais afazeres, novos desafios. Destes adorava escrever tão certinho o nome das peças que ele controlava na obra, fazia com tanto capricho e zelo que mais uma vez o observaram com outros olhos bem intencionados.
Em seu primeiro aniversário na capital Joca Tijó já havia comprado algumas roupas, degustado de incomuns guloseimas, aquelas mesmas que ele só via nas propagandas de televisão em Novo Triunfo, melhorado a aparência, estava até mais vaidoso.

Em uma certa sexta-feira, apontou próximo ao departamento onde Joca trabalhava, um outro homem, este já de trajes sociais, olhar concentrado em detalhes, fixo nos armarinhos que Joca havia cuidadosamente pregado na parede. Em meio a quinze minutos de conversa com o chefe de setor, aproxima-se de Joca e diz: - “Jovem, você gostaria de ter um emprego na construtora dessa obra?”.

Naquela noite Joca não deu sossego ao sono de Jacinto e seu sobrinho, Tião. Falava nas possibilidades, no dinheiro que iria ganhar, nas atividades que ia se comprometer a fazer, mas já sabia com qual roupa e sapato iria usar na manhã seguinte para falar o decidido “sim” ao homem que lhe dera um cartão com o endereço da tal empresa.
Não foi fácil se adaptar ao novo trabalho. Joca teve muitos obstáculos a superar: deixar de ser um “bicho-do-mato”, por exemplo, foi o mais terrível de todos, pois as pessoas eram diferentes, falavam uma “outra língua”, era tudo muito assustador, mas ao mesmo tempo fantástico para sua mente e olhos.

Seu desenvolvimento profissional era tão admirável e veloz que recebeu convites para cursos de especialização, uma bolsa para estudar em uma universidade. Davam-lhe credibilidade em tudo, só pelo fato de perceberem imediatamente que se tratava de um jovem de confiança, honesto e dedicado ao extremo.

A missão do tio de Tião já havia terminado na grande metrópole, precisava voltar com o “fruto colhido” para o norte. Por isso, um dos dias mais difíceis de sua vida quando já era gerente de projetos da construtora que não parava de crescer foi o qual se despediu de seu melhor amigo e o tio, homem que o trouxe para viver agora essa vida inédita, mas cheia de esperanças e planos.
Nunca na vida Joca desfrutava de tanta privacidade, sensação de poder e ter, não observava mais os valores dos itens que colocava no carrinho quando ia ao supermercado, tinha praticamente o que queria, mas ainda não conseguira se desvencilhar da solidão naquele apartamento frio em um dos melhores bairros da cidade.

Mais uma vez João Carlos havia se tornado um dos melhores em sua área de atuação. Tanto que as cobranças seguiram essa tendência. As horas extras já faziam parte de sua carga de trabalho semanal como se fosse absolutamente normal ficar até altas horas da noite dentro de seu escritório. Ele se doou cento e cinqüenta por cento em relação à sua capacidade de produzir. Exigiram dele mais. Contribuiu com duzentos por cento do que podia. Pediram que fizesse ainda mais. Conseguiu dar-se de si o que estava além de seu limite físico, emocional e até racional.
Havia um encorajamento natural, adquirido pela experiência dos anos que se passavam, para encarar novos desafios em sua vida. Falar com várias pessoas estranhas que nunca costumara ver na frente já não era mais um sacrifício causador dos momentos em que suas mãos suavam perante a grande preocupação que carregava desde menino: a de ser rejeitado por qualquer atitude que tivesse. Incluído num ambiente pobre de amizades verdadeiras, que ele mesmo descrevia como uma “atmosfera podre” e de propósitos não compatíveis ao seu caráter granjeado de berço, Joca também aprendia muitos truques até ilegais com uma sociedade de pouquíssimos idôneos, de pensamentos opostos à sua propensão natural, sobre como sobreviver empregado e inserido no grupo.

As escassas horas de mordomia e prazer que tinha quando usava seu dinheiro, objeto que até sobrara em sua conta bancária há meses, o faziam esquecer um pouco os momentos de correria, do nível máximo de cansaço e pressão moral que sofria no emprego de salário gordo.
Carregando dias assim, e achando que tais sensações eram resultado de uma simples gripe de cidade grande ou até mesmo da fadiga diária que já se acostumara, perdurou em continuar sua rotina acordando sempre no mesmo horário e delineando o análogo caminho ao seu trabalho, quando ligava o rádio para ouvir notícias matinais a bordo do carro que tanto se orgulhava de ter conquistado.

Mas em uma determinada tarde de segunda-feira seu corpo o avisou: havia desenvolvido a tal espécie de pânico de viver, medo de sair de casa, chorava por horas antes de começar mais um dia de trabalho. Estava desorientado e atordoado.

Parte do salário já estava destinada há alguns meses para consultas no médico que seu amigo de setor, Marcelo, o recomendara e também para comprar remédios que só amenizavam sua angústia de não saber como decidir entre: parar para viver um pouco, mas perder todo um crescimento profissional e realização financeira que o iria aplacar no futuro, ou dar continuidade aos dias de resignação, desprazimento com uma ocupação excelentemente remunerada que havia conquistado com muita luta, mas que o estava deixando doentio.

Depois de refletir sozinho, em uma cadeira na varanda de seu apartamento naquela rumorosa madrugada afora, Joca começou a recolher do chão uma porção de pedaços de papel. Eram os quais fazia contas, cálculos do que aconteceria ou deixaria de acontecer para o destino de um quase trintão, a fim de ter a inteira e absoluta segurança de não tomar a decisão errada.
Foi quando Joca, com ares de um homem firme em seus pensamentos, mas sabendo que chegara a hora do início de mais um dia repleto de muito trabalho, saiu do banho, vestiu os mesmos trajes que usara para ocupar seu cargo, agarrou com brevidade sua mala e deu sequência aos passos de seu cotidiano modo de viver.

Eram dez da manhã quando Marcelo notou um bilhete em vez do computador portátil que todos os dias escondia o rosto de seu amigo mais estreitamente ligado, sobre a mesa da sala ao lado. De imediato clamou por sua amiga de repartição que já chegara cruzando as mãos e Marcelo, desabotoando a gravata e com a sensação de não acreditar que se tratava de nenhuma brincadeira do amigo, começaram a ler juntos:

“Caros amigos e amigas de trabalho:
Como não suportaria fazer uma despedida como teria de ser, resolvi escrever este bilhete que está em suas mãos para agradecer aos bons momentos que dividimos aqui nesta empresa. As amizades, os desafios e as turbulências que enfrentamos juntos. Turbulências essas que me fizeram enxergar lá trás, quando eu era menino e talvez não soubesse o que viria pela frente. Mas mesmo assim encarei com competência e coragem tudo o que era diferente para mim. Caí, levantei, curei dentro de mim uma pessoa que era cega, não via em ninguém uma intenção aprovadora de minha pessoa, pode ser devido à criação que tive em casa. Mas isso é passado.


Vocês não precisavam chegar a mim e dizer uma só frase. Eu percebia no dia a dia que todos me adoravam, apesar de estarmos sempre competindo nesse mercado de trabalho. Gostei de todas as semanas, meses e anos que me dediquei a esta empresa que me abriu horizontes.
Todavia esse ritmo e sistema de correr contra o tempo, refazer o que já estava bom, lutar para conseguir melhores produtos do que dos concorrentes e seguir praticamente uma seita que prega a redução de custos e o melhor em menor tempo, entre outras ideologias que eu não suportaria mais um dia em seguir, decidi por voltar de onde vim. Viver minha vida simples, sem o luxo que eu tinha, talvez até sem o carro que eu comprei de imediatismo, afinal eu tinha um bom salário. Lembram a primeira vez que saímos com ele, estávamos todos juntos a caminho daquele bar onde nos divertimos à farta? Pois é. Na terra onde nasci e estou voltando não faria sentido eu sequer ligar o rádio ou abrir o teto solar no meio de tanta aridez, falta de asfalto.

Por isso decidi desejar a vocês grandes conquistas e que sejam os profissionais mais felizes, mais realizados e bem pagos do mundo! Porque amanhã de manhã eu vou começar a resgatar, mesmo que seja moroso, um pouco da felicidade que eu tinha e da simplicidade de viver que perdi me dedicando a somente fazer números em minha conta no banco e não encontrar nesses anos que passei longe de mim mesmo, um sentido de vida”.

Joca Tijó


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